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3 de jan. de 2012

A cidade sem catracas – Parte I: Cultura do automóvel


Este artigo é a primeira parte de uma reflexão que proponho sobre a mobilidade urbana no espaço do Blog Coletivo de Outras Palavras. A série compreenderá a Campanha pela Tarifa Zero em São Paulo e as bicicletas, como alternativas possíveis para a mobilidade.

Neste primeiro texto, o alvo é a cultura do automóvel e seus efeitos sobre a mobilidade urbana. Mobilidade urbana é entendida aqui como as condições necessárias para o deslocamento das pessoas ou, em outras palavras: a pessoa conseguir se locomover da casa para o trabalho e para onde quiser ou precisar, seja por meios motorizados ou não motorizados. É o que garante, para o conjunto da população, o acesso aos serviços e equipamentos públicos que a cidade oferece, é dizer: o direito à cidade. O acesso à saúde e educação é impossível sem mobilidade abundante e barata.


Em uma cidade como São Paulo, cuja frota tem mais de 7 milhões de carros, ficar parado no trânsito já é coisa banal. O paulistano gasta, em média, 2h49 (duas horas e quarenta e nove minutos!) por dia para se deslocar. No último dia 02 de setembro, São Paulo alcançou a marca recorde de 220 quilômetros de congestionamento. Além de causar perdas irreparáveis na qualidade de vida da população, as horas desperdiçadas com o trânsito geram prejuízos bilionários às empresas e à cidade, entre as perdas na logística e o aumento dos gastos em saúde por conta de acidentes e poluição.

Ainda assim, o governo segue a cartilha da indústria automobilística e seus sindicatos: a cada R$ 12 gastos em incentivos ao transporte particular, o governo investe R$ 1 em transporte público, conforme mostrou o estudo sobre mobilidade urbana do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. O instituto atribui a piora no trânsito a esta relação de investimentos. Por sua vez, a população nutre o velho sonho de consumo americano: quem pode continua comprando carros. Há, aqui, um aparente paradoxo: as pessoas usam carros porque não há um transporte público de qualidade ou não há um transporte público de qualidade porque se fomenta prioritariamente o uso dos carros?

O modelo que difundiu, priorizou e transformou o automóvel em objeto de desejo remonta ao início do século XX, nos Estados Unidos, ainda hoje imitado pelo Brasil. Seu efeito principal foi o sucateamento do transporte público coletivo: fim dos bondes, pouco investimento em trens e metrô, nenhum investimento em ciclovias. Quanto aos ônibus – meio de transporte mais utilizado pelos brasileiros, a entrega das concessões de exploração comercial deste serviço público a máfias empresariais (a maioria sem licitação) prestam um desserviço à população. No caso paulistano, os subsídios dados pela prefeitura às empresas e o aumento das tarifas muito acima da inflação carecem de justificativa por parte do prefeito Gilberto Kassab (ex- DEM), que a justiça paulista pediu em março deste ano.

No Brasil, o uso do transporte individual ocupa mais de 80% das vias, mas serve apenas 27% das pessoas. Isto significa que 73% dos deslocamentos (a soma de transporte público coletivo, deslocamentos a pé e por bicicleta) tem que disputar 20% do espaço que resta nas vias. Assim, aqueles que não podem ou não querem usar carros nos seus deslocamentos enfrentam os efeitos do congestionamento causado pelos privilégios dados ao automóvel; porém, quem usa automóvel também não desfruta da facilidade de deslocamento desejável.

Na cultura do automóvel, se investe mais em ampliação de vias, construção de pontes e asfaltamento do que nas calçadas, expansão do metrô, quantidade e qualidade dos ônibus e ciclovias. Ocorre que o espaço físico na cidade é limitado: não há tempo, recursos ou viabilidade para investir no viário no mesmo ritmo em que aumenta a frota de veículos. Ainda que houvesse, o volume de automóveis (em crescimento a 10% ao ano) não poderia caber em ruas e avenidas, por mais numerosas e largas que fossem. O modelo é insustentável.

Neste sentido, o problema do trânsito parece não ter solução. Porém, há incontáveis exemplos de práticas e medidas já adotadas por cidades ao redor do planeta, que se não podem ser imitadas, servem de inspiração para outra cultura de mobilidade. Pensar o trânsito é pensar todos os modos de deslocamento de maneira integrada, ou seja, uma rede de calçadas, corredores de ônibus, linhas de metrô, ciclovias, VLTs e, – por que não? – automóveis.

Cidades na França, Espanha, Dinamarca, Alemanha, Indonésia, Colômbia e Inglaterra, além da Holanda e mesmo no Brasil, elaboraram planos de mobilidade para implementar soluções que transformaram a relação da população com o espaço urbano. Algumas experiências de sucesso consistiram em restringir e reduzir o acesso de veículos particulares em determinadas áreas centrais, ao mesmo tempo que se abriu espaço nestas vias para os demais meios de transporte.

Opções políticas neste sentido tem que considerar (inventar, imaginar, arriscar) medidas simples de grande impacto, como a pintura de faixas e sinalização, na inversão de prioridades de avenida como por exemplo a 23 de Maio, em São Paulo. Uma calçada bem cuidada, uma pista exclusiva para as bicicletas, uma para os ônibus, e três pistas para os carros poderiam significar maior rapidez de deslocamento, uma vez que haveria espaço para todos. Tal inversão seria, na prática, aquilo que o Código de Trânsito Brasileiro já determina em teoria: primeiro os pedestres, seguidos pelos ciclistas, o transporte público coletivo e, por último, o transporte particular motorizado.

Sobre Juliana Machado

Juliana Machado é feminista, formada em direito, pesquisadora em sociologia urbana e ciclista. Atua em movimentos sociais pelo direito à cidade e por outra política de drogas.

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