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18 de mar. de 2010

A materialidade da negação: transporte coletivo em Feira

Começo pelo óbvio: o sistema de transporte coletivo de Feira de Santana é uma desgraça. Deixo claro que não me refiro à atividade cotidiana dos trabalhadores envolvidos nesse serviço tão essencial à sociedade, que, é bom que se diga, comem o pão que o diabo amassou tendo que desempenhar seu ofício nas péssimas condições de trabalho que lhes são oferecidas. Trata-se aqui da própria estrutura e sentido do dito Sistema Integrado de Transporte (SIT), aspectos completamente dominados pelo intuito dos empresários do setor de lucrar acima de qualquer coisa (inclusive da qualidade desse serviço público essencial), e sacramentados pelos poderes públicos municipais, cujo pão nosso de cada dia parece incluir fechar os olhos para o problema. O resultado mais evidente é conhecido por todas e todos: linhas insuficientes, percursos que não contemplam eficientemente inúmeros bairros, ônibus velhos, atraso nos horários, falta de integração entre as diferentes modalidades de transporte e, para voltar a mais uma obviedade, um preço de passagem que é uma verdadeira extorsão. Não obstante todos os problemas por demais conhecidos por qualquer feirense ou por quem por cá vive, uma nova e infeliz obviedade se juntou às anteriores. Não bastando os incontáveis transtornos a que submete a ampla maioria da população feirense, agora o Sistema de Transporte mata.
Gostaria que o caráter homicida da política municipal de transporte fosse apenas uma expressão alegórica, mas não é. No dia 5 de fevereiro um micro-ônibus da empresa 18 de setembro atropelou dois motociclistas na ladeira do Feira IV, matando um deles. Como costumeiro, todos os esforços têm sido feitos para implicar o “peão”: o motorista foi chamado a prestar depoimento e a principal linha de investigação destacada na cobertura jornalística, até onde pude perceber, foi a de “falha humana”, suspeita fortalecida pelo envolvimento do mesmo motorista em outro acidente na semana anterior ao episódio fatal. Contudo, o depoimento do motorista dá indícios, no mínimo, para outra visão do caso. O motorista disse que a causa do acidente foi “falta de freios” no micro-ônibus que dirigia, problema ligado a falta de manutenção mecânica e ao estado de conservação do veículo presumo eu. O interessante é que o veículo que apresentou o defeito, de acordo com o depoimento, já era o segundo dirigido pelo motorista, uma vez que o primeiro também apresentou problemas mecânicos de vazamento de óleo. Portanto, dois problemas mecânicos em um só dia! Quando inquirido sobre o outro acidente em que esteve envolvido, circunstância em que o ônibus que dirigia bateu em uma casa, o motorista argumentou também uma “falha nos freios” do veículo como causa do ocorrido. Ora, se o depoimento do motorista é condizente com a realidade, o que se entrevê a partir de seu relato singular é a situação caótica da frota utilizada no SIT. Que os ônibus são, via de regra, velhos e mal cuidados não é segredo para ninguém, mas que a ânsia de maximizar os lucros faça os empresários do transporte colocar em risco de perder a vida tanto de quem trabalha no serviço quanto dos passageiros e transeuntes é uma constatação dramática para quem precisa usar transporte coletivo no dia-a-dia. Não por coincidência, na semana seguinte ao depoimento a TV Subaé exibiu reportagem sobre os riscos provocados pelo má conservação das vans “gratuitas” que fazem a “integração” com o SIT. A alegação do presidente do sindicato dos trabalhadores das vans é sintomática: as empresas de ônibus, segundo ele, não pagam em dia aos trabalhadores e isso torna impossível a manutenção adequada dos veículos. Me recuso a acreditar que nesse descaso pela vida, exibido pelo empresariado do transporte, não haja boa dose de cálculo.
O Conselho Municipal de Transporte, cuja função básica seria a garantia do interesse social nesse serviço que é uma concessão pública, “ignora” solenemente a realidade do transporte coletivo de Feira de Santana e aguarda o momento em que se reunirá, às vésperas de um feriado qualquer para evitar manifestações de insatisfação, para aprovar um novo aumento da passagem. A Câmara Municipal, a “Casa da Cidadania”, não teve tempo até agora de discutir a situação calamitosa do transporte, mas, corre à boca pequena, que até o fim desse ano legislativo definirá qual é o sexo dos anjos, problema metafísico que tira o sono da maioria da população feirense. Por sua vez, o prefeito Tarcísio Pimenta parece que deixou de pegar ônibus desde a sua campanha eleitoral, momento em que apareceu como “usuário”, e cumpre com a mesma dedicação de seu predecessor o papel de deixar o empresariado do transporte deitar e rolar em Feira de Santana. Aliás, tem a mesma e tradicional eficiência das gestões municipais feirenses em sancionar (em tempo recorde) o aumento da tarifa “democraticamente” decidido pelo Conselho Municipal de Transporte. Desse forma, o transporte de Feira de Santana continua na sua evolução de mau para pior graças a um misto de corrupção, autoritarismo e conivência.
O SIT funciona mal para a maioria de Feira de Santana, mas “muito bem obrigado” se o ângulo for os interesses das elites econômicas e políticas da cidade. Me parece forçoso reconhecer que as linhas e horários dos ônibus funcionam, às custas de superlotação é bem verdade, para levar e trazer de seus locais de emprego as trabalhadoras e os trabalhadores da cidade. Para essas elites, esse sistema de transporte “bovino” basta, já que se não estiver trabalhando ou comprando a maioria da população deve ficar confinada em seus bairros. Por isso, não deve ser visto como “acidental” que o transporte seja ruim durante a semana, mas pior ainda nos finais de semana. Nesse sentido, o transporte coletivo feirense serve, mal e porcamente, aos fins estreitamente pragmáticos da dinâmica econômica da cidade, mas é a materialização diária da negação do usufruto da cidade em que vivemos. Para quem costuma culpar um suposto “provincianismo cultural” pelo esvaziamento de certas iniciativas artísticas locais, com certeza, a ausência de uma política democrática de transportes me parece um dos determinantes mais objetivos para o desenvolvimento histórico do hábito de “não ir”, cultivado pela maior parte de Feira de Santana a partir da sua experiência de segregação espacial. Ao contrário dessa situação de restrição da sociabilidade e da vida cultural a que somos submetidos na Terra de Lucas, as trabalhadoras e os trabalhadores deveriam ter o direito de acesso à cidade preservado, ao longo de toda a semana, enquanto a garantia para o próprio exercício do direito ao lazer e do direito à arte.
Transporte público e democratização da cidade não é, certamente, uma relação tão óbvia quanto o estado lastimável do dito SIT. Todavia, se o óbvio precisa ser percebido, também precisa ser superado pela compreensão aguda da raiz dos problemas. Por isso mesmo, creio que não basta “remendar” o SIT, é necessário entender e combater a lógica antidemocrática materializada nele: na cabeça dos mandatários da cidade, Feira de Santana deve funcionar (inclusive seu transporte) apenas em função de seus interesses particulares de lucro. Se isso acontece, para as elites econômicas e políticas locais tudo está de “bom tamanho”. Assim, para além dos discursos políticos que arrotam democracia e das medidas cosméticas ligadas à gestão do transporte, não há um compromisso real desses senhores com uma política verdadeiramente democrática e popular – o que teria como sine qua non uma política de transporte que garantisse de forma barata, ampla e com qualidade a circulação da imensa maioria da população feirense pela cidade (que afinal de contas é sua). Sem isso, a maioria da cidade, dos motoristas aos passageiros e pedestres, continuará sentido na pele as consequências de uma situação que não criou. Mesmo quem acha que encontrou a saída individual, a moto ou carro próprio, cada vez mais lidará com a natureza “democrática” das contradições urbanas: engarrafamentos, acidentes e poluição, para ficar no mais recorrente, envolvem a todos em uma cidade cujo transporte coletivo não funciona para a maioria. Aliás, nada mais emblemático dessa triste verdade que o atropelamento de um motociclista por um ônibus velho sem freios.


Jhonatas Monteiro é professor da rede estadual de ensino e membro do PSOL Feira de Santana

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