“Eu me senti um exilado dentro do meu próprio País. Ficava no quarto pensando que eles iam invadir a qualquer momento.” O relato do estudante baiano Helder Santos Souza, 25 anos, poderia ser menos assustador se o “eles” da frase acima não fizesse alusão a policiais, mais especificamente aos integrantes da BM (Brigada Militar), equivalente gaúcho da PM.
Aluno do curso de licenciatura em História da Unipampa (Univeridade Federal do Pampa), Helder morava na cidade de Jaguarão (RS), fronteiriça ao Uruguai, fazia pouco mais de um ano. Originário de Feira de Santana (BA), foi parar no extremo sul do país por meio do Enem e do vestibular unificado. Sentia-se assimilado pela comunidade. Fez amigos, arrumou uma espécie de família adotiva e, no primeiro inverno, despreparado para o frio, recebeu doação de agasalhos dos moradores.
Estudante de escola pública, primogênito de uma lavadeira que criou sozinha cinco filhos, ex-vendedor de picolé, ex-assessor de deputado, Helder cresceu em casa sem banheiro e comia, segundo seu relato, bolinho de feijão com farinha e um pedaço de carne no meio “pra não dizer que comia sem mistura”. Na casa da família não há fotos de infância. Naquela época, as câmeras digitais não eram populares. Mesmo hoje, a família ainda não conseguiu comprar uma. Ainda assim, o rapaz se orgulha de ser o primeiro da família de sua mãe a entrar na faculdade. “Não sou cotista. Só com a minha nota consegui entrar na Unipampa, ela foi o suficiente para em passar em 17º lugar de um total de 50 vagas.”
O orgulho de Helder, porém, foi ferido no dia 6 de fevereiro. Na saída de um concurso para a escolha do Rei Momo e da Rainha do carnaval na cidade de Jaguarão, fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, Helder e mais quatro amigos, alguns deles, segundo a Brigada Militar, com passagem pela polícia, foram abordados por nove brigadistas (soldados) na saída de um baile de carnaval. Durante a revista, relata Helder, houve abuso de autoridade contra ele e seus colegas. “O Josemar começou a ser agredido de cassetete. Quando eu virei para olhar, um dos policiais falou: ‘Olha pra parede negão!’.”
Helder questionou o vocativo. Apanhou, foi algemado e detido sob acusação de desacato a autoridade. Poucas horas depois, após fazer exame de corpo de delito, o rapaz foi solto. Novamente, não se calou. Procurou a corregedoria da BM, o Ministério Público e contou sua história numa rádio local, citando os nomes de todos os brigadistas envolvidos. O assunto ganhou proporções. Vinte dias depois, Helder receberia uma carta anônima, datilografada, parabenizando-o pela coragem de enfrentar a Brigada. No entanto, o texto trazia uma ressalva: que tomasse muito cuidado durante o Carnaval, pois o Comandante da BM em Jaguarão teria dado ordem expressa de “moer o baiano e os amiguinhos” dele.
A carta relata um suposto plano para agredir o estudante, em represália à denúncia, de modo a não deixar marcas, com uso de choques inclusive. “Achei que era para me intimidar. Mas levei o assunto à direção do campus, que pediu detalhes do caso à corregedoria. Aí chegou a segunda carta.” Nela, o vocativo é “baiano nego sujo” e as ameaças são diretas. Caso Helder aparecesse na corregedoria e contasse a verdade, iria apanhar. “Nego sujo, volta pra Bahia”, dizia a carta. A própria diretora do campus de Jaguarão, Maria de Fátima Ribeiro, também recebeu uma carta, esta com ameaças de morte por ter pedido esclarecimentos sobre o caso, com acusações de que a universidade só trazia lixo para a cidade.
"Nego sujo, volta pra Bahia", dizia uma das cartas ameaçadoras dirigidas ao estudante |
A esta altura, o caso já tinha ido parar na Secretaria de Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul, que, em conjunto com a Unipampa e com o advogado do rapaz, promoveu a retirada de Helder da cidade. Levado para Porto Alegre, foi acolhido no Quilombo da Família Silva, o primeiro quilombo urbano do Brasil, até que pudesse ser levado de volta a Feira de Santana. “Amava minha cidade de Jaguarão. Minha situação era estável. Trabalhava na secretaria de Direitos Humanos da cidade. Ganhava 800 reais. Tive que fugir sem nem receber meu salário.”
Não é a primeira vez
O acesso de Helder à universidade pública foi possível por caminhos tortuosos. O cursinho que frequentou, foi pago com uma indenização de 6 mil reais recebida em 2009 de um supermercado na Bahia – Helder estava na fila conversando com amigos, foi confundido com um pedinte e expulso do local. Seu desempenho na Unipampa era regular, segundo a reitora Maria Beatriz Luce. Ela frisa que 50% das vagas da Unipampa são destinadas a ações afirmativas e que o desenvolvimento de Helder “progrediu do primeiro para o segundo ano”.
Para não perder o semestre, o estudante irá se beneficiar do programa de mobilidade e assistirá aulas de seu curso no campus de Cachoeira da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano), com pleno reconhecimento da Unipampa. Caso não queira mais voltar a Jaguarão, fará uma prova de transferência para se tornar aluno regular da instituição baiana no segundo semestre.
Apesar de tudo, Helder não acusa o Estado do Rio Grande do Sul de ser racista. O sociólogo e professor da Unicamp, Carlos Alberto Doria, que recentemente publicou o ensaio “Por que não somos racistas”, também defende a ideia de que juridicamente o Brasil não é racista. “No Brasil, o racismo é quase crime de opinião. O Estado não é racista. Acredito que este seja um comportamento discriminatório geral, não um racismo histórico. Claro que no Sul, onde há uma identificação mitológica com os europeus, devido à colonização, isso se manifesta mais. Só que você anda pelo interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e vê que tem muita miséria. Tem colônias em que os camponeses só falam alemão, não falam português. O que há de desenvolvimento social nisso?”
A reitora da Unipampa também admite a existência de sentimentos racistas na região, embora não de forma generalizada, pelo fato de a universidade estar promovendo a diversidade cultural. “Uma parcela da sociedade está satisfeita. Outra não está.”
A que não está, segundo relatos do coronel Flávio da Silva Lopes, do Comando Regional de Patrulhamento Ostensivo Sul, são alguns produtores rurais insatisfeitos com a presença de 24 assentamentos do Movimento Sem Terra (MST) que a BM ajuda a proteger. Ele acredita que as cartas anônimas e o caso Helder foram usados oportunamente com o objetivo de desestruturar o responsável pela patrulha dos assentamentos. Em uma das cartas recebidas por Helder, há acusações de que os policiais envolvidos no caso do estudante também coordenavam um esquema de segurança privada na região. O caso está sendo investigado.
Já os policiais que agrediram Helder foram afastados das ruas por injúria, abuso de autoridade e lesão corporal. Por medida cautelar, seguirão realizando trabalhos administrativos. “Durante a investigação, constatou-se que houve abuso e os policiais foram punidos. O Helder está correto. Se sentiu ofendido e foi reclamar”, diz o coronel Lopes.
Fonte: Carta Capital
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