Marcos Monteiro*
O “socialismo” é um substantivo comum precisando urgente de adjetivos incomuns. No jogo das palavras que produzem a história, “socialismo” é substantivo quase banido do nosso noticiário, da nossa política e do nosso cotidiano. Sorrateiramente, o vocábulo foi sendo exilado para as margens da vida, para alívio de alguns, especialmente para os grupos que vivem confortavelmente neste mundo tão desconfortável.
Quem viveu a efervescência dos anos sessenta (e seguintes) e a esperança quase tocada de um mundo melhor, sabe que o substantivo comum “socialismo” já foi sinônimo exatamente de “esperança” e de “mundo melhor”, palavra que juntava gente e que ameaçava interesses, palavra gritada, cantada, escrita, publicada, anunciada, palavra que fazia sonhar parte da população e causava insônia na outra, nessa minoria privilegiada, cercada de luxo em uma estrutura produtora de lixo e miséria.
A palavra se perdeu nas adjetivações da história. No século XIX havia os socialismos “utópicos”, tantos e de tantas cores, e o socialismo “científico”, único e hegemônico, firmemente estabelecido nos alicerces da ciência, nos resultados das gigantescas pesquisas de Marx que teve a genialidade, segundo Edgar Morin, de reunir ciência, filosofia e política em construto complexo. Colocado na prática de várias experiências do século XX, demonstrou contradições e fragilidades, tornando-se socialismo “real”.
No fim dos anos noventa o mundo muda e a palavra começa a desaparecer, perdida pelos escombros de um mundo sombrio. Curiosamente começa a desaparecer também a palavra “capitalismo”, mistério não tão misterioso dos antônimos entrelaçados. Socialismo sempre foi a crítica do capitalismo. Destituída a crítica, desaparecida a obscuridade, o objeto criticado tornou-se tão luminoso que não pode mais ser encarado, nem precisa. Ele mesmo é a luminosidade que dá a claridade, sol esplendoroso que ilumina o mundo.
Entretanto, sem a crítica das sombras o mundo não ficou melhor. A hegemonia quase absoluta do capital nos leva a ter saudades do desusado substantivo, talvez com novos adjetivos. Esse sol ofuscante não parece ser luz benfazeja, mas radiação que ameaça a vida do planeta, um Mamom todo-poderoso sem nenhum diabo para lhe combater os excessos. Os sacerdotes do capital promovem guerras, invadem países, retiram direitos de todas as pessoas, sob a bênção dos seus profetas, seguindo os seus textos sagrados.
Dentre os textos antigos, o do patriarca Adam Smith, que nos convidou a cuidar cada um do nosso próprio interesse que uma espécie de “mão invisível” cuidaria do interesse da coletividade. Hoje temos de admitir um sistema não de uma única mão, mas de muitas mãos invisíveis, que repetem o gesto ritual da coletividade, enquanto encaminham para seus próprios bolsos “as riquezas das nações”. Um dos resultados da perversidade do sistema é uma brutal concentração de renda, ao ponto de Domenico De Masi admitir que cerca de quinhentas pessoas dominam mais da metade do PIB de todo o planeta.
Quando lembramos hoje da coisificação do ser humano que significou a economia escravista, quando abominamos a corvéia do sistema feudal, sonhamos pessoalmente com um futuro em que se fale do horror do sistema capitalista, época em que o ser humano e seus valores mais nítidos foram transformados em mercadoria. Neste momento atual, o sistema capitalista quase não consegue ser percebido, como não percebemos o ar que respiramos e que nos garante a vida. Na cumplicidade das metáforas, ambos estão se tornando cada vez mais irrespiráveis.
Mas, quem sabe, nesse futuro remoto, ou nem tanto, as perversidades estruturais de um sistema baseado no egoísmo e na exploração do tempo e da alegria do trabalhador, terão sido tornados objetos de estudos históricos, tema de redação indignada de pessoas que viverão já nesse mundo melhor que esperamos. A palavra para esse possível e impossível mundo ainda é “socialismo”, substantivo comum, talvez então cercado de adjetivos incomuns. Houve um tempo até em que se falava de um socialismo à brasileira, com carnaval, samba e futebol. Tomados em seu valor simbólico, nunca como estão atualmente também estruturados pelo capital, esses podem ser bons caminhos para se repensar a humanidade.
Feira de Santana, 19 de maio de 2011
*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.
Fone: (71) 3266-0055.
Fonte: Blog - Marcos Monteiro
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