Uma das coisas
curiosas das recentes manifestações que marcaram o Brasil a partir de junho é
que boa parte de quem usou a chamada “máscara do Anonymous” não sabe que sua aparição
“pop” tem origem na história em quadrinhos “V de Vingança”, do genial escritor inglês
Alan Moore. A história, escrita na década de 1980, tem como personagem
principal um anti-herói chamado “V” que usa uma máscara de Guy Fawkes (Militar católico
que participou de uma conspiração em 1605 que pretendia explodir o Parlamento,
entre outros objetivos). Daquele lado do mundo, lembrado todo 5 de novembro, o
episódio que ficou conhecido como “Conspiração da Pólvora” ainda hoje provoca
reflexão sobre a relação entre as instituições políticas e a maioria da
população. Do lado de cá, em especial à juventude, talvez interesse saber também
que Feira de Santana tem um acontecimento certamente menos conhecido, mas muito
mais relevante para pensar essa mesma relação: se trata do chamado “Quebra-quebra”
na Câmara Municipal, uma revolta popular que hoje faz 50 anos de acontecida.
Em 29 de novembro de
1963, uma multidão formada por estudantes e moradores de diversos bairros de
Feira ocupou a Câmara para acompanhar a sessão que votaria o orçamento
municipal para o ano seguinte. Assim, nesse dia histórico, aconteceu um “Quebra-quebra”
na Câmara motivado pela insatisfação popular com a manobra política dos
vereadores conservadores que levou à suspensão da sessão como forma de impedir
a aprovação do orçamento elaborado nos bairros. Como marca arrojada da gestão
do então prefeito Francisco Pinto, eleito com o slogan “Chico Pinto na
Prefeitura é o povo governando”, uma das rápidas iniciativas do Executivo
Municipal foi organizar “sociedades de bairro” para discussão e decisão sobre o
orçamento de Feira. Dessa maneira, Chico Pinto buscou democratizar
verdadeiramente a escolha das prioridades públicas no município – Postura que
deveria envergonhar a maioria dos atuais gestores que substituem a participação
popular direta pelos conchavos de gabinete. Mais precisamente, relembrar o
episódio deveria interessar aos nossos atuais vereadores e vereadoras. Afinal,
o acontecimento é revelador do que pode acontecer quando os mandatos são
utilizados à revelia do interesse público e necessidades da maioria da
população.
Mesmo sem fazer desta
ocasião um balanço da atual legislatura, o que exigiria outro texto inteiro, é
importante constatar que há um abismo entre Câmara e as suas obrigações com o
povo de Feira. Mesmo sem exigir um improvável compromisso revolucionário dos
atuais vereadores e sabendo que a democracia representativa não dá conta das
demandas sociais, espera-se que os representantes atuem adequadamente. Ou seja,
demonstrem conhecimento e defesa do interesse público nas suas ações. Embora
recorrentes na mídia local ou na “boca do povo”, graves problemas como o
tratamento inadequado do lixo, o uso “político” da saúde pública, a
precariedade infernal do transporte coletivo, a escandalosa falta de planejamento
urbano democrático não foram alvo de nenhuma proposta radical ou mesmo de
investigação profunda. Temas complexos como casamento civil igualitário ou
maioridade penal, que exigem pesquisa real para ultrapassar o “achismo” dos
preconceitos, se prestaram mais à afirmação de homofobia e desconhecimento da
realidade da juventude. A básica função de fiscalização do Executivo, não
desinteressadamente, foi substituída por um “amém” ao prefeito – como visto na
“apreciação a jato” dos projetos encaminhados por este à Câmara. Aliás, o
quadro é tal que se discute normalmente como prova de “força política” o
vereador A ou B ter X ou Y cargos de indicação, como se esse loteamento privado
do que é público fosse aceitável. É claro que nesse cenário, salvo os momentos
de exceção, resta muito pouco: sessões solenes para conferir honrarias
desnecessárias, repetição superficial da “polêmica” do dia saída na mídia e a
disputa sem fim para saber se é “menos pior” o quarto governo José Ronaldo ou o
segundo governo Jacques Wagner!
É sempre bom lembrar
que dentro de cada momento de radicalização popular existem causas políticas e
sociais: a revolta em 1963 foi, diretamente, fruto da postura de uma Câmara “de
costas” para uma participação popular sem precedentes. Se considerarmos a forma
como a maioria dos vereadores fugiu das questões trazidas durante as recentes manifestações
de junho, inclusive permitindo que a “Casa da Cidadania” fosse fechada com
tapumes, esse “desencontro” continua. Em contraponto, a memória das revoltas
populares assombra quem no presente continua a fazer a mesma política de
privilégio em favor dos dominantes e exploradores do momento. Desse modo, como
a “Conspiração da Pólvora” tornou a máscara de Guy Fawkes um símbolo crítico,
talvez a lembrança do nosso “Quebra-quebra” também sirva de inspiração para
quem em Feira defende uma política que se “reencontre” com a maioria da
população. Afinal, em um lugar onde sobram símbolos de exclusão popular, como o
bizarro vidro que separa o povo dos seus “representantes” na Câmara, saber da
nossa história de lutas tem mais valor que nunca.
Jhonatas
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