Se existe uma “conversa para boi
dormir”, com certeza, a tal “publicização” do Hospital Geral Clériston Andrade
(HGCA) se encaixa perfeitamente na definição. A conversa é a de sempre nas
privatizações: os problemas resultantes do próprio descompromisso governamental,
no discurso do secretário de saúde Jorge Solla e aliados, se resolverão com a
entrega da administração hospitalar para uma Organização Social (OS). Também
nesse caso, a administração direta é vista como a grande vilã responsável pela
situação do HGCA, o que obviamente é um ótimo disfarce para os verdadeiros
responsáveis pelos problemas decorrentes do descaso financeiro e ingerência
política na instituição. Por sua vez, assim como no caso das estradas
esburacadas que foram privatizadas, não por coincidência o HGCA também tem sido
sucateado de modo acintoso – o que, na prática, quer dizer de modo assassino
porque implica na morte de inúmeras pessoas por falta de condições de
atendimento. Evidente que sucatear o que é público é uma velha estratégia,
amplamente conhecida desde a época nada saudosa de FHC, para convencer a
maioria da população que entregar para a iniciativa privada “resolve”. Aqui me
parece que a intenção é impedir que a pergunta correta seja feita: os recursos
destinados ao HGCA pelo governo estadual dão conta das necessidades de uma
instituição que atende, pelo menos, 126 municípios? Para todo mundo que
trabalha no hospital, já viu ou teve o desprazer de estar nos corredores
lotados da instituição, bem como conhece relatos de pacientes, a resposta
evidente é que não dão conta.
Sem dúvida, mudar a forma de
gestão não resolve os problemas de recursos do hospital, mas também existem
outros motivos para que a sociedade não aceite a privatização do HGCA. Em
primeiro, porque a “publicização” não se apresentou como uma proposta
justificada, mas efetivamente como uma imposição do governo Jaques Wagner. Não
houve qualquer consulta pública real, uma vez que as duas audiências que
discutiram a questão aconteceram por pressão da sociedade e, em especial, até a
presente data a Secretaria de Saúde não apresentou nenhum Estudo de Impacto que
justifique a mudança de gestão, preveja suas implicações e exponha os
resultados esperados. Assim, como pode a sociedade considerar uma “proposta” se
as suas justificativas não foram sequer expostas de modo formal? Além disso, a
privatização do HGCA é legalmente frágil diante da própria Constituição Federal
e dos órgãos de controle social na saúde, pois tanto está em tramitação no
Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN
1923/98) contra esta modalidade de gestão quanto o próprio Conselho Nacional de
Saúde (CNS) é contrário a esse tipo de terceirização há anos (Deliberação
001/2005). Em específico sobre a situação das trabalhadoras e dos
trabalhadores, estudo comparativo do Tribunal de Contas do Estado (TCE) de São
Paulo, de 2010, indica que essa modalidade de gestão aumenta a desigualdade
salarial, com os cargos de chefia ganhando acima da média de mercado e todos
outros abaixo (Acrescento ainda a precarização dos vínculos empregatícios já
que, evidentemente, reduz o número de profissionais concursados). Contudo, o
mesmo estudo indica ainda um quadro tão preocupante quanto para o interesse
público e o atendimento da população, pois a experiência paulistana demonstra
que a gestão através de OS tem maior prejuízo econômico, maior custo por leito
ao ano, taxa de mortalidade geral maior e apresenta crescimento do tempo em que
o paciente fica sozinho no seu leito, dentre outros problemas que podem ser
vistos também no Relatório da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde
enviado ao STF
(https://docs.google.com/file/d/0B3SRQLv1tEAVOE9WUDAtYXlubnc/edit?pli=1).
Além de tudo, o discurso oficial
do governo estadual diz que “publicizar” não é privatizar o HGCA,
convenientemente esquecendo que privatização não é apenas a venda direta de uma
instituição pública, mas também quando a gestão do que é público passa a se dar
sob uma lógica igual ao do mercado. O problema é que enquanto uma empresa atua
no mercado visando basicamente o lucro privado, uma instituição pública deve
buscar essencialmente atender direitos de melhor forma possível. Dessa forma, a
própria ideia de eficiência tem implicações diferentes em cada uma dessas
esferas: no privado interessa cortar custos para maximizar o ganho, já no
público interessa atender às necessidades das pessoas mesmo que muitas vezes
seja inadequado do ponto de vista mercantil. Nesse sentido, a alegação
governamental de que não se trata de privatização porque o HGCA “continuará
patrimônio público” conta com o desconhecimento de um detalhe: desde quando foi
necessário colocar a placa “vende-se” no SUS para chegarmos à atual situação em
que mais de 60%, segundo o próprio Ministério da Saúde, dos seus serviços e
procedimentos já são ofertados pelo setor privado? O que seria “complementar”,
segundo a Constituição Federal, infelizmente é hoje predominante. Essa
privatização “por dentro”, de modo algum, melhorou o atendimento à maioria da
população – muito pelo contrário. Por isso mesmo, o que queremos não é mais
privatização, mas recursos para um SUS 100% público e de qualidade. Em Feira,
como parte dessa luta, a própria ideia de que uma gestão do HGCA através de uma
OS é “a solução” pode e deve ser contestada.
Jhonatas
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