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16 de dez. de 2011

Os desafios do movimento negro hoje – Por Fábio Nogueira

Fábio Nogueira*

É necessário relacionar o atual momento vivido pelo movimento negro com o que a retomada das lutas dos afro-brasileiros e a formação do MNU (Movimento Negro Unificado) nos estertores da ditadura militar. Apesar de não apresentar um programa socialista, o MNU assumiu a vanguarda do processo de conscientização do povo negro e aliou a isso uma radical revisão dos cânones de integração do negro à sociedade nacional. Não foi pouca coisa. Tratou-se de uma verdadeira revolução cultural da qual até hoje colhemos os frutos. Deslocar o imaginário nacional de pretensa “docilidade” e “masoquismo” do negro em relação à escravidão e o racismo e construir uma identidade baseada no orgulho racial, na defesa dos valores afro-brasileiros e na experiência do Quilombo dos Palmares, é um enorme ganho às atuais e futuras gerações de afro-brasileiros. Apesar das diferenças com a “esquerda branca” as reivindicações do MNU, nos anos 80, tinham um forte sentido classista e aliancista com os movimentos populares. É no final da década de 80, que a experiência do MNU começa a colapsar (sem que necessariamente ele tenha atingido o seu objetivo de ser um movimento unificado dos negros brasileiros): suas dissensões internas darão origem a grupos e entidades independentes (algumas, aliás, que já existiam, ao largo do MNU).


O dilema do MNU foi o de todas as organizações de caráter popular, surgidas com o fim da ditadura: agir por dentro dos partidos de esquerda, por fora ou se converter em uma espécie de partido-movimento? O fato, no entanto, é que ao contrário de outras organizações – como a CUT, MST e CMP – surgidas neste período, o MNU não chegou a ter uma base de massas. Com a crise do MNU – que foi também uma crise ideológica e de destino – as entidades negras (cada vez mais minúsculas, especializadas, profissionalizadas e sem base social definida) passaram a se apresentar na arena política como “representantes da sociedade civil”. Num contexto de reforma neoliberal, em que o estado deixou de lado os discursos de caráter universalista e abraçou as políticas focalizadas através da transferência de recursos às entidades da sociedade civil (primeiro, as ONG´s e, hoje, as OSCIP´s) foi se fortalecendo a desideologização do movimento negro brasileiro. Sendo mais explícito: houve uma incorporação do movimento negro ao jogo político do estado neoliberal. Se, por um lado, o movimento negro passa a ser reconhecido como um “ator político”; por outro, ele é incorporado de forma subordinada ao projeto das elites. Este projeto, a meu ver, só se concretiza efetivamente quando da eleição de Lula, em 2001.

Apesar da reação conservadora à Seppir e às políticas de ação afirmativa – capitaneadas pelo DEM e o PSDB – sem dúvida, hoje, o PT é o principal articulador desta incorporação subordinada do movimento negro ao projeto das elites, sob a égide do consenso neoliberal. Ao contrário do “núcleo duro’ da direita conservadora (DEM e PSDB), a direita liberal petista movimenta-se através da mitigação das reivindicações e bandeiras de luta dos movimentos sociais e, de forma combinada, sofistica seus instrumentos de controle da autonomia destes movimentos. Este aspecto fica evidente quando da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial – ficção jurídica e política que, na prática, tornou-se um instrumento inócuo dado que resultado de um acordo “por cima” entre PT e DEM. A aprovação do Estatuto da Igualdade Racial foi o ponto máximo das possibilidades de um pacto liberal-conservador. Evidentemente, os movimentos sociais devem romper com a cortina de fumaça – que contribui a sua desorientação estratégica –que se inaugura com a chegada de um partido de origem popular (PT) ao poder central. A hegemonia burguesa e das elites redefiniu-se em termos da ideia de que há hoje, para os “de baixo”, ganhos reais e efetivos (mesmo que insuficientes dadas às necessidades históricas de nossa população) e de que estes participam (mesmo que de forma subordinada ou acessória) da divisão do poder político. Esta “social-democracia” do subdesenvolvimento, inaugurada pelo PT, combina – de forma competente até agora – o consenso de que vivemos um momento de estabilidade econômica em função de um “neodesenvolvimento liberal” (calcado no consumo e no endividamento) com doses cavalares de coerção e desrespeito aos direitos fundamentais (vejamos, só para citar um exemplo, o aumento exponencial da população carcerária e do aprisionamento em massa e as polítcas de ocupação militar de morros e favelas - UPP´s).

Diante deste quadro, afirmar que entre a direita (liberal ou conservadora) e a esquerda, eu sou negro é jogar água no moinho de desideologização do movimento. Para alguns, infelizmente, parece não existir problema em tropas da OTAN bombardearem, invadirem e assassinarem o presidente da Líbia, Kadafi, desde que o presidente dos Estados Unidos seja Obama, um afroamericano. Se calar diante deste crime – um atentado a soberania dos povos - é agir da mesma maneira dos que se calaram diante da morte de Steve Biko, de Patrice Lumumba e de Maurice Bishop. Enquanto os Mapuches morrem em greve de fome, no Chile, o movimento negro brasileiro foi facilmente ludibriado pela máquina de propaganda dos cubanos-americanos de Miami (financiados pelo Departamento de Estado) quando da morte de Orlando Zapata, em Cuba. Quiseram caracterizar a morte de um caráter racial que nunca teve, pois em Cuba, ao contrário do que se afirma, não há perseguição aqueles que denunciam o racismo presente naquela sociedade. Afinal, a quem interessa que o movimento negro brasileiro se torne aríete de crítica e movimentos que tem o caráter exclusivo de desestabilizar a revolução cubana? Ao mesmo tempo, porque a luta dos Mapuches, dos zapatistas, povos originários e outros grupos étnicos e raciais parecem tão distantes da realidade do negro brasileiro?

As políticas de ação afirmativa – um instrumento eficaz e necessário de combate ao racismo – emergem quando da aplicação do projeto neoliberal como a panacéia para o dilema racial brasileiro e em torno delas se construiu todo o arcabouço institucional daquilo que se denomina “políticas de promoção da igualdade racial”. Parece paradoxal, mas hoje assistimos a um refinamento do mito da democracia racial (afinal, as elites pensam, nós demos cotas para vocês, o que querem mais?!). A conseqüência deste processo é a invisibilização do racismo em nossa sociedade.

Portanto, o desafio que está colocado ao movimento negro hoje é reafirmar a vigência do racismo, em particular, na esfera institucional, colocando-se não apenas na defesa de ações afirmativas, mas dos direitos das populações quilombolas e da juventude negra. Quando pensamos a institucionalidade temos que entendê-la para além dos órgãos e secretarias ligados a atividades sociais (cultura, educação, saúde etc), de desenvolvimento econômico e infra-estrutura e entender a articulação destas com o braço coercitivo do estado e os seus aparatos de repressão. Hoje, por exemplo, com a política de Mega-Eventos (Copa do Mundo e Olimpíadas) ocorre uma articulação entre diversos setores do poder público: ministério do esporte, infra-estrutura, cidades à promoção daquilo que entendemos como políticas de faxina étnica.

O que é faxina étnica? Nós definimos faxina étnica como uma articulação de políticas estatais– marcadas por seu caráter violento e coercitivo - em torno de um duplo movimento de desterritorialização/reterritorialização da população negra e pobre deste país. Em linhas gerais, temos uma forte tendência de segregação especial entre negros e brancos que, durante os Mega-Eventos, assumem características mais dramáticas. Portanto, nós não acreditamos que políticas “focais” resolvam o problema do nosso povo. Quando o movimento negro critica as políticas universalistas deve entender que há um limite a esta crítica, pois não vivemos um estado social, de direitos plenos. Não podemos ser linha auxiliar a direita conservadora e contribuir a retirada de direitos e garantias sociais (até porque, elas também beneficiam nossa população).

As políticas universalistas não são nossas inimigas: aliás, as políticas de ação afirmativa reforçam o sentido universalista das políticas públicas, ao corrigir distorções. É um aperfeiçoamento das políticas públicas e não se encontra, necessariamente, em oposição a estas. Hoje, portanto, o movimento negro tem que recuperar a capacidade de produzir contra-ideologias a ordem dominante – como o foi, por exemplo, a denuncia do mito da democracia racial – e para isso, um projeto alternativo de sociedade precisa ser construído, nas lutas concretas, desde um horizonte utópico que recupere o sentido universalista inscrito em nossa cosmovisão africana.

Existe um “continente” de coisas acontecendo na América Latina – só pra citar um exemplo, a Constituição da Bolívia que reconhece aquele país como um Estado Plurinacional – e nós, do movimento negro, simplesmente não nos apropriamos desta rica experiência. No movimento social, ao contrário de outros espaços da vida em sociedade, nós podemos escolher nossos companheiros de viagem: alguns preferem os palácios encarpetados e os tapas nas costas de senhores engravatados, negros e brancos, que convertem nossa dor e sofrimento em números e dividendos políticos; outros, preferem caminhar com os “condenados da terra” - proletários, camponeses, negros, povos originários que lutam e sonham por uma sociedade sem racismo e exploração. São com os “condenados da terra” que o movimento negro deve caminhar!!!

* Professor universitário e Coordenador Nacional de Formação Política do Círculo Palmarino.
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